O que leva uma adolescente de 14 anos a esconder uma gravidez da família, realizar o parto sozinha, em casa, e depois golpear o bebê com um objeto cortante a ponto de feri-lo mortalmente? São respostas que a Polícia Civil vai tentar responder ao avaliar o caso que chocou a comunidade da Guarda do Cubatão, no último sábado (3).
O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foi acionado por volta de 16h para atender a ocorrência. Duas viaturas foram deslocadas para o atendimento: uma unidade de suporte básico e uma unidade de suporte avançado (UTI móvel). Os profissionais do Samu fizeram o atendimento da adolescente e do bebê e constataram a gravidade do estado de saúde do recém-nascido. A criança foi encaminhada pela UTI móvel até o Hospital Regional de São José, e a mãe (que apresentava sinais vitais estáveis) seguiu para o mesmo destino na unidade de suporte básico. Na chegada ao hospital, a criança foi levada diretamente para a UTI pré-natal, onde apresentou uma parada cardiorrespiratória e foi reanimada pela equipe médica do Regional, com auxílio da equipe do suporte avançado do Samu. O bebê lutava pela vida e chegou a ser encaminhado ao centro cirúrgico, onde acabou não resistindo aos ferimentos.
O laudo pericial ainda não saiu - geralmente, leva de 10 a 15 dias para ser divulgado. Até terça-feira (6), o corpo do bebê ainda estava sob os cuidados do Instituto Médico Legal. O laudo vai determinar com precisão as lesões provocadas e o nível de gestação, mas a informação preliminar é a de que a adolescente estava no oitavo mês de gestação; e o bebê teria sofrido golpes no tórax e no pescoço.
Do hospital, foi feito o contato com o 7º Batalhão da Polícia Militar, que fica em São José; porém, como a agressão ao bebê aconteceu em Palhoça, o caso foi acompanhado por policiais do 16º Batalhão e a ocorrência foi registrada na Polícia Civil de Palhoça. O delegado Fabiano Rocha, da Delegacia de Proteção a Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCami), recebeu a informação na madrugada de sábado (3) para domingo (4). Ainda na madrugada, o delegado colheu o depoimento do pai da adolescente. O delegado relata que o pai ainda estava em estado de choque, por isso, vai voltar a ouvir o pai e a mãe da adolescente durante esta semana.
Também serão ouvidos professores, colegas de escola e amigas próximas. O delegado quer saber se alguém percebeu mudanças no comportamento da jovem grávida, que também será interrogada futuramente. Por enquanto, ela permanece internada no Hospital Regional - com previsão de alta até o final de semana. A adolescente ainda aparenta estar em estado de choque, “desnorteada”, segundo informações repassadas ao delegado. “Ela não recuperou totalmente a capacidade de cognição, por isso está sendo acompanhada por médicos e especialistas em psiquiatria no Hospital Regional”, relata Fabiano Rocha. Justamente por isso, o delegado vai evitar questioná-la neste momento.
Na noite de terça-feira (6), o delegado acompanharia a equipe de profissionais que faria a perícia no local do parto - até a tarde de terça, o objeto contundente utilizado para agredir a criança ainda não havia sido encontrado. “Quero esse instrumento. O pai não localizou”, lamentou o delegado. Peritos iriam utilizar a substância luminol para verificar se tinha algum objeto na casa com vestígios de sangue - uma faca ou uma tesoura, por exemplo.
A informação inicial é a de que a adolescente fez o parto sozinha, em seu quarto; cortou o cordão umbilical e depois golpeou o bebê; em seguida, enrolou-o em um tecido e o colocou dentro do guarda-roupas. O pai da adolescente é que teria desconfiado ao ver manchas que pareciam ser de sangue, por uma janela do quarto, e chamou o Samu. Mas toda esta linha do tempo só deve ser esclarecida após a análise das evidências e das informações que serão colhidas no inquérito, que deve ser concluído em 30 dias - o procedimento de investigação foi aberto na segunda-feira (5). “Vamos ver durante a investigação o que ocorreu neste período todo, da gestação até a data em que ocorreu o ato infracional”, projeta o delegado. Só então, vai poder definir o ato infracional em que irá enquadrar a adolescente. “Eu vou aguardar o parecer médico antes de imputar qual é o ato infracional que ela praticou, se é o homicídio ou se é infanticídio”, relata. “Pelo laudo, se o médico comprovar que estava em estado puerperal (durante a expulsão da criança do ventre, há intensas alterações psíquicas e físicas que chegam a transformar a mãe, deixando-a sem plenas condições de entender o que está fazendo), que diminuiu a capacidade de entendimento da mulher durante ou após o parto, é infanticídio; o legislador entende, nesses casos, que é um homicídio privilegiado, com pena mais baixa”, explica.
Se fosse uma mulher adulta, a pena para o infanticídio é de dois a seis anos de reclusão. Para adolescentes, a nomenclatura muda para “ato infracional”. A Polícia Civil encaminha o procedimento para o Ministério Público, que vai designar audiência com a adolescente e com testemunhas, sob o acompanhamento do poder Judiciário, e será definida a aplicação de uma medida socioeducativa, que vai desde advertência até internação de um a três anos - neste caso, a decisão pode ser revista de seis em seis meses.
Segundo caso neste ano
Esse foi o segundo caso parecido que ocorreu em Palhoça este ano, com o mesmo modus operandi. O primeiro ato infracional foi praticado por uma adolescente de 17 anos, que realizou o parto sozinha, no banheiro. Nesta ocasião, foi considerado um infanticídio e a delegada que realizou o procedimento de investigação entendeu que não havia a necessidade de representar por uma internação provisória.
Nos dois casos, os pais não sabiam da gravidez. O delegado Fabiano Rocha pondera que é “estranho” os pais não saberem. Ele demonstra preocupação com a quantidade de registros de gravidez na adolescência (mães de 12 a 17 anos) no Brasil. Preocupação partilhada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Este ano, a ONU expressou essa preocupação em um relatório: no Brasil, a taxa é de 62 adolescentes grávidas para cada grupo de mil jovens do sexo feminino na faixa etária entre 15 e 19 anos - índice maior do que a taxa mundial, que corresponde a 44 adolescentes grávidas para cada grupo de mil. “O percentual vem diminuindo, mas a passos de tartaruga, ainda é um número muito grande e a maioria não tem estrutura familiar, não tem apoio; a maioria tem que parar estudos, os pais dessas crianças praticamente abandonam a mãe, porque também são imaturos. É uma situação bem complicada, porém, não justifica o ato, porque ela tirou a vida de uma pessoa”, reflete o delegado Fabiano.
No momento oportuno, quando estiver clinicamente recuperada, a adolescente deve passar pela avaliação de psicólogos lotados na DPCami. “A gravidez, em si, já tem muitas alterações hormonais, psicológicas, emocionais, em qualquer mulher. Como essa fase da adolescência já é uma fase diferenciada, de transição, de muitos conflitos psíquicas, é um momento em que ela está buscando uma identidade e começa a questionar alguns conceitos que tinha aprendido dentro de casa. É uma fase muito difícil, e muitas vezes a mãe não tem maturidade suficiente e discernimento para lidar com essa situação, e a maturidade emocional é muito importante para pensar no que fazer e não fazer, medir consequências, isso a gente faz quando tem maturidade. Então, não é algo extremamente monstruoso, pelo contexto, pelo estágio de desenvolvimento dela, para a situação que ela não esperava e não desejava, então tem que considerar todos esses pontos e não simplesmente condenar e punir. Claro que ela vai responder, mas também a gente tem que ter um olhar, no meu caso, o olhar psicológico, procurando compreender esse indivíduo, com todas essas contingências que estão influenciando naquele momento”, observa a psicóloga policial civil lotada na DPCami Helen de Oliveira.
Helen explica que o psicólogo policial civil faz o atendimento relacionado ao suposto crime (ou ato infracional, neste caso) e, se achar que há necessidade de acompanhamento, faz o encaminhamento para a rede municipal de atendimento. Na rede, em tese, esse encaminhamento é feito ao Centro de Referência da Assistência Social (Cras) quando nenhum direito foi violado e o atendimento é mais preventivo; e ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), quando já ocorreu a violação do direito. O Centro de Atenção Psicossocial (Caps) também pode ser acionado. “Toda mulher, após o parto, passa por um período conturbado e muitas ficam deprimidas e existe um risco em função desse estado emocional peculiar”, conclui a psicóloga da DPCami.
02/12/2024
02/12/2024