O palco de quase 50 anos de histórias sumiu sob a força do trator. Histórias da bola, histórias de um futebol que unia toda uma comunidade em torno das cores verde, branco e amarelo. O campo virou memória, enquanto se transforma em estrada. Mas quem viveu glórias e tristezas naquele gramado vai lembrar para sempre que ali, onde o Contorno Viário da Grande Florianópolis invade o Aririú, ficava a casa do Tapuia Futebol Clube.
Ex-jogadores, ex-dirigentes, eternos torcedores e até mesmo moradores que não são muito ligados ao futebol se comovem ao observar a terra mexida. "O que fizeram foi um pecado. O campo existia há 45 anos, aquilo ali era da comunidade. A primeira vez que eu passei ali depois que desmontaram eu fiquei procurando o campo, não existe mais. Aquilo ali era o meu coração", diz o ex-jogador Manoel Vieira, um dos grandes craques da história do Tapuia, tão identificado com o clube que é conhecido como “Manoel da Tapuia”.
Hoje, quando passa pelo campo destruído, Manoel vira o rosto. Não quer olhar para a obra e experimentar a amarga sensação de que toda a história que ele ajudou a construir foi negligenciada. História que começou no final dos anos 1960, quando um grupo de funcionários da prestigiada Cerâmica Tapuia solicitou ao proprietário, Gentil Cordioli, a cessão de um terreno para a construção de um campo de futebol. O terreno ficava em um banhadão. Depois de se certificar de que ali não havia barro de qualidade que pudesse ser utilizado pela empresa, Cordioli cedeu o espaço e os próprios funcionários se responsabilizaram pela implantação do campo de futebol. Eles mesmos plantaram a grama onde eles mesmos brilhariam no futuro.
Alberto Prim, o maior artilheiro da história do Tapuia, conta que seu pai, seu Antônio, funcionário da cerâmica, foi um dos fundadores do clube e estima que o campo tenha sido inaugurado por volta de 1972. Ele começou a jogar ali em 1975. Foi o ano em que foi formatado o estatuto do clube, com a finalidade de “promover o esporte, atividades sociais, recreativas e culturais”. “Com o envolvimento da comunidade, famílias vinham prestigiar os jogos, se reuniam, e toda a comunidade apoiava o clube”, relata um texto publicado na página do Facebook “Sou Tapuia F.C” (facebook.com/TapuiaFC). “Quando a gente viu que o campo iria sair, comecei a correr atrás da história”, conta Dyego de Campos, criador da página. O tio dele também ajudou a construir o campo. “A gente já joga ali desde criança, a gente faz parte daquilo ali”, observa.
Dyego entrevistou antigos jogadores e convocou personalidades do esporte a se manifestarem nas redes sociais com a #Sou+Tapuia. A ideia era mobilizar as pessoas com relação à manutenção do clube, com a obtenção de outro espaço para a construção de um novo campo – o que ainda não aconteceu. A preferência é por um terreno no próprio Aririú, para que o Tapuia FC, hoje chamado de “Veteranos das 4” (o nome faz alusão ao grupo de veteranos que se reunia para jogar todos os sábados, às 16h), não fique longe de casa. Afinal, foi ali, no bairro, que o time viveu suas maiores conquistas.
Quem jogou naquele campo conta que o gramado era bom, apesar de que a grama era mais alta em um dos lados, e quem corria por ali fatalmente cansava mais. Cansaço, mesmo, o Tapuia deu nos adversários. Nos anos 1980, chegou a ficar mais de 45 partidas invicto, com o supertime que tinha como base: Pequeno; Osvaldir, Celso, Hamilton e Zezo; Luiz Dutra, Manoel e Vilmar; Alcir "Gaguinho", Alberto Prim e Jair. "Era só goleada. Foi o melhor time que a Tapuia teve. Era muito boleiro. Nunca joguei em um time tão bom", relembra Manoel. “Tinha o rapaz que fechava os jogos para os times e ninguém queria enfrentar a Tapuia, porque era só goleada", acrescenta.
Alberto Prim conta que, conforme as vitórias iam se acumulando e a fama aumentava, os adversários se reforçavam com jogadores de outros times quando aceitavam marcar jogo contra o Tapuia. “Como eles sabiam que a Tapuia estava há muito tempo sem perder, eles pegavam uns caras de outros times para vir jogar com a gente. Fomos perder a invencibilidade para um time local, depois eu passei a jogar neste time, um time muito mais de boleiro festeiro do que jogador de clube, que é o Morango”, relembra o artilheiro.
Era tão importante para o adversário acabar com a sequência do invicto Tapuia que eles trataram de “sequestrar” um dos craques do time. Alberto era amigo de muitos jogadores do Morango e foi encontrá-los na manhã de domingo (o jogo estava marcado para as 15h) em uma sorveteria famosa na época no Aririú. Mal sabia ele que era uma “emboscada”. "Eles me seguraram em uns cinco, seis, e me levaram para cima da laje e disseram: 'Hoje tu não vai jogar'. E me amarraram ali. Eu fiquei lá. O jogo era às três horas da tarde. Começou a machucar meus braços, minhas pernas, e domingo à tarde no Aririú não passava viva alma. Minha sorte é que a Sandra, uma amiga minha, me viu e conseguiu me tirar dali e fui para o jogo”, relata o atacante.
Mesmo com Alberto em campo, a invencibilidade caiu naquele domingo. O Morango venceu por 1x0, em um jogo “cheio de desastres”. Alberto se machucou em um choque com o goleiro adversário e precisou sair de campo. Amaro Junior teve uma fissura e Frederica quebrou a perna. Os dois últimos eram jogadores do Morango, que mesmo assim, conquistou a vitória.
O craque
Claro que Manoel seria um dos integrantes daquele “supertime”. Meia com rara habilidade, é considerado por muitos como o maior jogador da história do clube. “Manoel me botou muito na cara do gol”, destaca Alberto Prim.
Manoel nasceu em Imaruí, no Sul do estado, e só não foi jogador profissional porque não quis. “Gostava muito da bagunça”, relembra, sobre a adolescência, quando surgiram os primeiros convites para seguir carreira no mundo da bola. Depois, casou e quando o sogro veio morar em Palhoça justamente para trabalhar na Tapuia, Manoel o acompanhou e criou raízes na empresa. Trabalhou lá por 22 anos, até a cerâmica fechar as portas.
Logo no primeiro jogo, em maio de 1979, já mostrou qualidade suficiente para ser promovido ao “primeiro time”. E ali ficou. Foram 35 anos vestindo a camisa do clube - foi até presidente! Manoel estava em campo na maior conquista da história do clube: o título da Segunda Divisão do Campeonato Palhocense. Foi no início dos anos 1990. A final foi diante do Rio Grande. O primeiro jogo, disputado no campo do Atlântico, terminou em 0x0. O duelo decisivo aconteceu no campo da Tapuia e o time da casa venceu por 2x1. O árbitro era Clésio Moreira dos Santos, o popular Margarida, hoje colunista do Palavra Palhocense. “A final foi pegada, teve até prorrogação. A comemoração foi intensa. Fiquei de cueca porque ainda consegui correr", relembra Alberto Prim.
Manoel, hoje, mora na Praia de Fora, e sente falta do futebol. Tem 63 anos. Queria ter jogado até os 65 anos, e tinha preparo físico para isso, mas uma fatalidade o levou a parar com as peladas. Em um jogo no campo da Tapuia, levou uma bolada no rosto e perdeu a visão no olho esquerdo. Voltou a jogar, levou outra bolada, desta vez no olho direito, e ficou momentaneamente cego. "Comecei a gritar: ‘tô cego, tô cego’! Todo mundo se apavorou, não teve mais jogo", relembra. A visão foi voltando aos poucos, então Manoel saiu do vestiário para nunca mais voltar.
Uma bolada é suficiente para machucar o olho a este ponto? Depende de quem chuta. Se o chute partisse, por exemplo, da temida perna esquerda do hoje diácono Luiz Paulo Campos, era melhor não arriscar. Luiz Paulo reforça que naquela época se jogava por diversão e que o Tapuia sempre montou bons times. Porém, levar bolada não era nada divertido. “Teve um dia em que eu tinha batido três faltas: uma bateu na cabeça do cara, o cara caiu; depois eu chutei, pegou mais ou menos na região do rim, o cara ficou lá se esfregando; na terceira falta, da nossa torcida ‘inflamada’, de oito, dez torcedores, o falecido João Pequeno gritou: 'Chuta na barreira'. Quando eu corri pra bater, a barreira abriu toda, foi um saco na rede. O goleiro foi lá reclamar da barreira”, relembra, entre risos.
Luiz Paulo também lembra da força (literalmente) do chamado “segundo time” do Tapuia. “No segundo time, a maioria era pessoal da fábrica, pessoal forte, acostumado ao trabalho pesado, a carregar e descarregar caminhão. Podia perder jogo, mas não perdia briga”, diverte-se.
A briga, agora, é nos bastidores, para manter o clube em atividade. O futebol é importante para a comunidade, tanto que em 1993 o então prefeito Reinaldo Weingartner sancionou a lei número 56, que declarou o clube como utilidade pública municipal. Quando souberam que o Contorno Viário passaria sobre o campo, entusiastas chegaram a organizar um abaixo-assinado para tentar mudar o traçado, mas não teve adesão suficiente para ir adiante.
Eles, então, se organizaram sob o abrigo da Associação Esportiva Recreativa Cultural Comunitária Aririú (Aercca) e estão buscando um espaço para construir um novo campo. Não só para receber o Tapuia, mas para promover o lazer da população de toda a região. “Tinha três, quatro clubes aqui no Aririú que não tinham onde jogar, então a gente montou uma associação para tentar conseguir uma área para esses times jogarem”, relata Diego Wagner. Quem sabe eles consigam reerguer o clube e perpetuar sua história! E quem sabe, voltem a disputar campeonatos! “Eu tenho este sonho, de ver a Tapuia no campeonato municipal, queria jogar um dia”, projeta Dyego de Campos.