Por: Ramayana Lira*
No dia 19 de junho, celebramos, por convenção, o Dia do Cinema Brasileiro. Digo “por convenção” porque sabemos que datas de início e de fim tendem a ocultar processos contínuos e são, na maior parte das vezes, marcos estabelecidos pelos vencedores das narrativas históricas. No caso do cinema brasileiro, a data comemora um evento que é, de certa maneira, bastante revelador de como os responsáveis por essa história entendem as expressões “cinema” e “brasileiro”: a filmagem da Baía da Guanabara pelo italiano Afonso Segreto, em 1896, de dentro de um barco francês, usando equipamento europeu indisponível em terras brasileiras.
Revisores da história do cinema brasileiro, como Paulo Emílio Sales Gomes e Jean-Claude Bernardet, já apontavam para os paradoxos desse “nascimento” do cinema nacional, um cinema que se celebra como objeto do olhar do outro, que se deixa filmar sem reclamar para si os meios e o modo de produção dessas imagens e que privilegia o momento da filmagem em detrimento do encontro do filme com o público (vale lembrar que o marco histórico para o “nascimento” do cinema mundial é a exibição pública pelo Irmãos Lumière, em 28 de dezembro de 1895).
O que temos, então, para comemorar nesse 19 de junho de 2020? Em primeiro lugar, reconheçamos que, ao longo desses mais de 120 anos, nos apropriamos dos aparelhos e das linguagens e das invenções, construindo uma cinematografia importante que dialoga proficuamente com a nossa sociedade. Em segundo lugar, essa construção de um cinema nacional está associada ao crescimento de todo um campo da economia, representando, considerando o amplo espectro do audiovisual, parcela significativa do PIB. Mas também observemos com alegria a apropriação dos meios e das linguagens do cinema por sujeitos antes excluídos dessas formas de expressão, que constituem formas cinematográficas potentes: mulheres, pessoas negras, indígenas.
O que podemos chamar de “cinema brasileiro” é esse espaço de tensão entre essas formas emergentes e o chamado cinema “comercial”, entre os impulsos caóticos e criativos e o olhar “profissional”, entre tradição e rupturas, entre o nós e o outro, entre a grana e o tesão. Comemoremos a incompletude de nosso cinema, celebremos seu projeto em aberto! Porque, hoje, no seu aniversário convencional, o cinema brasileiro está sendo depauperado pelas instituições que deveriam protegê-lo.
O cinema brasileiro está sendo pintado como inimigo do povo. O que, claro, ele não é. Antes, o cinema brasileiro é aliado do povo, devolvendo-lhe a especular e espetacular imagem de suas forças e de seus fracassos. Pois se há uma coisa que o século XX nos ensinou é que se um povo não cuida de seu cinema, esse ou morre à míngua ou se volta contra ele, o povo, com a fúria e a violência de uma arte fascista.
* Professora da pós-graduação em Ciências da Linguagem e do curso de Cinema
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