Se por aqui ainda tem gente que debate se “devemos ficar em casa ou não”, lá do outro lado do mundo, tudo o que uma moradora de Palhoça mais queria neste momento era estar confortavelmente instalada em seu apartamento no Pagani, mesmo que a situação exigisse os rigores de uma quarentena. A chef de cozinha Angelita Marçal Flores, de 50 anos, está na Indonésia. Ela viajava de férias com uma amiga quando a pandemia explodiu, respingando os reflexos das restrições de mobilidade pelo sudeste asiático.
Angelita e a amiga, de Blumenau, chegaram à Tailândia no dia 2 de março. “Somos amigas desde a faculdade, há quase 35 anos. Nunca tínhamos viajado juntas. Planejamos por um ano, era um sonho ir a lugares sagrados, ver uma nova cultura, conhecer novas cozinhas”, contextualiza. Elas conheceram a capital, Bangcoc, e passearam por uma das mais famosas e paradisíacas das ilhas tailandesas, Koh Phi Phi. Depois, partiram para a Indonésia, onde previam conhecer os encantos de Bali entre os dias 12 e 20 de março. A ideia era voltar para a Tailândia no dia 21 e conhecer o Norte tailandês, a região de Chiang Mai, outro tradicional destino turístico do país. “Até aquele momento, não se falava em quarentena por aqui”, relata. Porém, a situação começou a piorar, muitos casos surgiram pelo continente e logo vieram as medidas restritivas. O voo de Bali para Chiang Mai foi cancelado. Compraram, então, passagens para Bangcoc, e novo cancelamento. Aí começou o pesadelo. A Tailândia fechou as fronteiras no dia 22 de março, em função da pandemia do Covid-19.
A amiga, que tinha um voo de volta para o Brasil agendado a partir de Bangcoc, conseguiu pagar R$ 3,5 mil extras e arrumou um encaixe em um voo a partir de Jacarta, a capital da Indonésia. Angelita não teve a mesma sorte. Isso porque ela tinha a previsão de ficar na Tailândia até o dia 28 de abril, estudando a culinária local, para depois partir rumo à Itália, onde trabalha em um restaurante. “Eu tinha o plano de ficar um mês na Tailândia, para estudar a cozinha deles e depois usar algo no meu trabalho na Itália. Foi tudo por água abaixo, a parte dos estudos”, lamenta Angelita.
A relação com a gastronomia vem desde criança, mas só foi consolidada em Palhoça. Angelita é de Laguna e trabalhava como professora na Unisul, em Tubarão, desde 1992, quando recebeu uma proposta de transferência para a unidade que a universidade havia instalado na Ponte do Imaruim. Depois, também trabalhou na unidade da Unisul na Pedra Branca. “Foram 16 anos trabalhando em Palhoça, acabei tendo uma aproximação com a cidade, com tudo, e acabei comprando um apartamento para morar, no bairro Pagani, que é onde eu tenho minhas coisas, minha casa, minha residência fixa. Apesar de eu viajar bastante, de trabalhar um período do ano na Itália, minha residência fixa é em Palhoça”, relata Angelita, que tem até um grupo no WhatsApp para matar as saudades de Palhoça quando está fora, o “Amigas da Palha”. “A gente volta e meia está sempre falando o quanto é bom morar em Palhoça, o quanto a cidade está se desenvolvendo. Venho sempre falando pras pessoas o quanto a cidade está crescendo. E é um lugar que eu gosto, gosto muito do meu apartamento, tem todas as minhas coisas aí, minha gata (Fran) mora no apartamento e tenho uma amiga que cuida do apartamento pra mim e da minha gata, então, minha vida fixa está em Palhoça e eu tenho uma grande admiração pela forma como a cidade, como a universidade nasceu e cresceu aí. É uma coisa que está no sangue, praticamente virei palhocense”, relata.
Foi em Palhoça que ela se formou em Gastronomia, enquanto trabalhava na Unisul Virtual. Sempre amou cozinhar, e decidiu realizar o sonho de ser chef de cozinha. Formada em 2013, foi para a Itália fazer um estágio e se apaixonou pelo país. Voltou do estágio com uma meta: um dia, retornaria à Itália para trabalhar. E retornou mesmo. Em 2017, desligou-se da Unisul e da Universidade de Santo Amaro, em São Paulo, onde também atuava, e partiu rumo à Europa. Primeiro, estudou na famosa escola internacional de cozinha italiana Alma, sob a batuta do renomado Gualtiero Marchesi, em Parma. E depois de trabalhar no Ristorante Abbruzzino, em Catanzaro, na Calábria, no Sul da Itália, recebeu o convite para fazer um projeto novo, começar um restaurante do zero, onde seria totalmente responsável por tudo. Aceitou o convite e estava indo para sua terceira temporada como a chef do Ristorante Paquito, em Sellia Marina, cidade praiana na mesma região, durante os meses da alta temporada de verão – de maio a setembro. Terminado o trabalho, voltaria para Palhoça.
Mas a temporada de verão que se avizinha no hemisfério Norte será atípica, especialmente na Itália. Até uma semana atrás, a moradora de Palhoça tinha esperança de que as coisas melhorassem na Itália e pudesse ir para lá. Hoje, só pensa em voltar ao Brasil. “Conversei com meus amigos lá na Itália, e eles me falaram que não tem nenhuma perspectiva de melhorar em período curto, que lá está muito difícil, é um dos países com mais dificuldade, em tudo, está caótica a situação, tudo fechado, e as pessoas não me recomendaram voltar à Itália, pelo menos não em um período curto de tempo”, lamenta.
O problema é conseguir um voo para voltar diretamente ao Brasil. Nos balcões das companhias aéreas, nem pensar. Um bilhete para o Brasil custa entre R$ 10 mil e R$ 15 mil, nas circunstâncias atuais. O jeito foi apelar para a embaixada brasileira na Indonésia. Angelita faz parte de um grupo de cerca de 300 brasileiros “presos” no sudeste asiático, em países como Indonésia, Tailândia, Vietnã, Laos e Camboja. “Estamos esperando uma resposta da embaixada, estamos tentando pressionar o Itamaraty. A embaixada nos diz que eles estão esperando recursos, tentando conseguir um voo charter, que pegue as pessoas em cinco países no sudeste asiático”, revela. “Além disso, ainda precisam negociar com os governos desses países para o voo poder entrar, pousar e retirar os brasileiros, ainda tem essa questão diplomática, porque todos os países estão com fronteiras fechadas, são questões que só o Itamaraty vai conseguir resolver. Então, estamos aguardando este tão esperado voo de repatriação, que já aconteceu em outros países”, informa.
Enquanto espera pelo resgate do Itamaraty, Angelita tenta sobreviver na Indonésia. Estava em um hostel em Bali, um dos últimos lugares que ainda estão aceitando hóspedes, mas a estrutura era precária. “O café da manhã eram duas fatias de pão e uma xícara de café com leite. Só. Não oferecem nenhuma outra refeição”, relembra. Para economizar mais, conseguiu alugar um quarto em uma casa com cozinha compartilhada.
A saudade do Brasil é aplacada em conversas diárias com o filho Arthur, de 29 anos, que mora em São Paulo. “Ele está muito preocupado. Nos falamos todos os dias”, conta a chef de cozinha, que ainda está enfrentando outro complicador: uma mala com seu uniforme e utensílios de cozinha foi guardada em uma empresa de armazenagem de bagagens no aeroporto de Bangcoc, e a empresa não está demonstrando muita solidariedade em resolver a questão. Logo expira o prazo de resgate e a mala será dada como “extraviada”. “Por ‘impedimentos legais’ eles ‘não podem’ ajudar. No meio de uma pandemia, com três voos cancelados, sem poder entrar na Tailândia, eles têm a cara de pau de falar isso”, irrita-se a chef de cozinha, que não vê a hora de chegar ao Brasil. “Eu quero pisar logo na minha Palhoça”, finaliza.