Por: Marcos Aurélio Gungel (Kito) *
Acordei nesta terça-feira (19) cinzenta e chuvosa com uma sensação estranha que não sabia explicar, até que, “bisbilhotando” a rede social, vi uma foto no perfil do juiz da World Surf League (WSL) Flavio Caldas “Bandalheira”, em que ele apare com o surfista Ricardo dos Santos, o Ricardinho da Guarda, durante um campeonato de surf realizado em 2014 pela Associação de Surf e Preservação da Guarda do Embaú (ASPG).
Só então percebi que foi justamente o dia em que o surfista local da Guarda tinha sido baleado, no ano seguinte, em 2015. Foi um dia estranho e nada agradável o que viria depois. História que todos já sabem. Aquele menino de sorriso largo e brincalhão, que desbravou o mundo para buscar as melhores e maiores ondas, principalmente as mais tubulares do planeta, viria a falecer no outro dia (20), nos seus plenos 25 anos de vida, dos quais, provavelmente, 20 deles com a prancha nas mãos.
Espaço curto diante da nossa expectativa de vida, mas muito intenso. Ricardinho foi um daqueles atletas que saiu da base. Começou nas competições da ASPG e participou de todas as categorias amadoras da Federação Catarinense de Surf (Fecasurf), sempre com bons resultados e com muitos pódios. Foi atleta dos times da ASPG, Fecasurf e nacional. Com 17 anos, já havia decidido ser surfista profissional e foi então que sua vida mudou, ganhando vários títulos internacionais.
Mas a trajetória que aquele menino seguiu no mundo do surf já é conhecida, por isso, queria dar meu testemunho de como aquele jovem já tinha crescido tanto nas ondas como no caráter. Havia nele um interesse especial pela Guarda do Embaú e pelos mais jovens do que ele – que, na visão dele, precisavam de auxílio para os próximos passos, seja nas competições ou na vida. Era exemplo, pois não usava drogas, era muito comprometido com a manutenção saudável na parte física e muito chegado à família e aos amigos.
Lembro do ano de 2012, ano de eleição na associação de surf. Eu estava me propondo a tocar a entidade mais uma vez e o convidei para participar da chapa. Antes de aceitar, porém, ele quis saber se o nosso projeto para aqueles quatro anos contemplaria a “galerinha”. “Precisamos dar força aos mais jovens. Os mais velhos já podem se virar sozinhos”, me disse. Outra condição para entrar na chapa era a de que não poderia participar das costumeiras reuniões, já que estava na maioria do tempo em “trânsito”.
Fomos eleitos e ali vi a esperança da renovação no surf e na condução da ASPG. Vi nele um jovem comprometido com as futuras gerações no esporte. Isto foi comprovado mais uma vez quando realizamos, em 2014, o primeiro Circuito Local de Surf, com três etapas, no qual Ricardinho, além de participar, acompanhando os eventos, também doou uma passagem para o Peru.
Como a passagem era o melhor prêmio, ela normalmente seria oferecida, no final do Circuito, ao vencedor da categoria Open, onde participam os experientes e prontos para eventos. Foi aí que ele se manifestou, dizendo: “Só dou a passagem se for para as categorias inferiores, pois quero incentivar que o vencedor tenha outras experiências”. Outra vez concordamos, evidentemente, e mais uma vez ficou evidenciada sua convicção naquilo que queria.
Sua passagem conosco, tanto na vida terrena quanto na direção da ASPG, acabou prematuramente, mas ele já tinha uma visão do que gostaria para o lugar onde nasceu. Segundo entrevista publicada na Revista da Guarda, em 2013, ele dizia: “A Guarda hoje representa um dos melhores lugares para a prática do nosso esporte em todo território nacional, ou seja, tem tudo para ser uma pérola no Sul do país, basta as autoridades quererem isso. É um lugar especial e muitos já sabem disso. Mas, o importante é saber que devemos continuar cuidando, com amor, carinho e respeito. Se todos se lembrarem disso, vamos ter a Guarda linda por muitos anos”.
Reconhecido internacionalmente com vários títulos, Ricardinho foi também um dos incentivadores para que a Guarda fosse certificada como a nona Reserva Mundial de Surf (RMS), título oferecido pela ONG Save The Waves Coalition, mediante quatro critérios: ondas de qualidade, características ambientais, cultura e tradição e apoio da comunidade.
Exemplo disso está no e-mail enviado em 5 de agosto de 2014 para Fernando Aguerre, presidente da Internacional Surfing Association (ISA), que compõe o conselho que define a escolha das Reservas Mundiais de Surf: “Como conversamos ano passado no US Open (Califórnia), continuamos dando um gás no processo de ter a Guarda como uma das praias que receberão o título de Reserva Mundial de Surf. Ultimamente, temos protestado bastante pela preservação, já que existem vários resorts querendo construir ao redor do rio, fato que iria destruir a onda. Novamente, peço sua ajuda para que seja analisada com muito carinho a nossa solicitação. Muito obrigado”.
Como também é do conhecimento público, a Guarda do Embaú foi aprovada e hoje está no seleto grupo das Reservas Mundiais de Surf (RMS), e Ricardo, juntamente com o campeão mundial de surf Adriano de Souza (Mineirinho), é o embaixador em memória.
Portanto, não foi à toa que a ASPG solicitou, logo após sua morte, que o município de Palhoça reconhecesse em sua memória o dia 20 de janeiro como o Dia Municipal do Surfista, data esta que compartilhamos como símbolo para nossa comunidade e a tribo do surf. Com certeza, ele somou muito para elevar o nome da associação, do surf, da Guarda e de Palhoça. Vá em paz, Ricardinho!
* Presidente do Comitê Gestor Local da nona Reserva Mundial de Surf e presidente-fundador da Associação de Surf e Preservação da Guarda do Embaú (ASPG)
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